

Não é de admirar - o coitado se sentiria quase impotente sem ela. No seu tempo, as dores de parto, asma, distúrbios nervosos e até bebês com cólica eram tratados com extrato fluido da Cannabis indica, também conhecida como "cânhamo indiano". (Cannabis é geralmente vista como tendo três espécies – indica, ruderalis e sativa - mas o cruzamento é comum, especialmente entre sativa e a indica) . Pelo menos 100 trabalhos científicos publicados no século 19 comprovam tais usos.
Então, surgiu a Marijuana Tax Act de 1937 que fez a posse ou transferência de Cannabis ilegal nos EUA, exceto para usos medicinais e industriais, que foram fortemente tributados. A legislação começou um longo processo para transformar o uso da cannabis completamente ilegal. Muitos historiadores examinaram este triste capítulo na história legislativa americana, e as evidências dúbias para dependência de cannabis e comportamento violento utilizados para garantir a passagem do projeto de lei. "Under the Influence: The Disinformation Guide to Drugs" ("Sob Influência: O Guia de desinformação às Drogas"), por Preston Peet fala sobre um caso persuasivo que o real propósito da lei era o de anular a indústria do cânhamo, transformando as fibras sintéticas, nas mais valiosas fibras para os empresários donos das patentes.
Entretanto, como um médico e botânico, meu objetivo sempre foi o de filtrar o ruído cultural em torno do gênero Cannabis e vê-lo desapaixonadamente: como uma planta com bioatividade em seres humanos que pode ter valor terapêutico. Sob esta perspectiva, o que ela pode nos oferecer?
Como se vê, um ótimo negócio. A investigação sobre possíveis usos medicinais da Cannabis está desfrutando de uma renascença. Nos últimos anos, estudos têm mostrado potencial para o tratamento de náuseas, vômitos, síndrome pré-menstrual, insônia, enxaquecas, esclerose múltipla, lesões raquimedulares, abuso de álcool, a artrite induzida por colágeno, asma, aterosclerose, doença bipolar, depressão, doença de Huntington, doença de Parkinson , doença falciforme, apnéia do sono, doença de Alzheimer e anorexia nervosa.
Mas talvez o mais excitante, canabinóides (componentes químicos da Cannabis, o melhor a ser conhecido tetrahidrocanabinol, ou THC) pode ter um papel primordial no tratamento do câncer e prevenção. Vários estudos têm demonstrado que estes compostos podem inibir o crescimento tumoral em modelos animais de laboratório. Em parte, isto é alcançado por inibir a angiogênese, a formação de novos vasos sanguíneos que os tumores precisam para crescer. Além do mais, os canabinóides parecem matar as células tumorais sem afetar as células vizinhas normais. Se estes resultados se manterem verdadeiros conforme a investigação avança, os canabinóides demonstrariam uma enorme vantagem sobre agentes quimioterápicos convencionais, que muitas vezes destroem tanto as células normais como as células cancerosas.
Já em 1975, pesquisadores relataram que os canabinóides inibiram o crescimento de um certo tipo de célula de câncer de pulmão em tubos de ensaio e em camundongos. Desde então, estudos laboratoriais têm demonstrado que os canabinóides têm efeitos contra as células tumorais do glioblastoma (um tipo letal de câncer de cérebro), bem como as de leucemia/linfoma, câncer de tireóide, e pele, útero, mama, estômago, colo-retal, pâncreas e câncer de próstata.
Até agora, o único teste humano de canabinóides contra o câncer foi realizado na Espanha, e foi projetado para determinar se o tratamento era seguro, não se ele foi eficaz. (Em estudos realizados com humanos, como "uma fase de testes", estão focadas em determinar a segurança de uma nova droga, bem como a dose certa.) No estudo espanhol, relatado em 2006, a dose foi administrada dentro do cabeça, diretamente nos tumores de pacientes com câncer no cérebro recorrente. O inquérito apurou a segurança da dose e mostraram que o composto utilizado diminuiu a proliferação celular em pelo menos dois dos nove pacientes estudados.
Não está claro que fumar maconha alcança níveis sanguíneos elevados o suficiente para ter estes efeitos anticancerígenos. Precisamos de mais pesquisas em humanos, incluindo estudos bem planejados para encontrar o melhor modo de administração.
Se você quiser saber mais sobre esse assunto, eu recomendo um documentário excelente, "What If Cannabis Cured Cancer" ("E se Cannabis curasse câncer"), de Len Richmond, que resume as conclusões das investigações notáveis dos últimos anos. A maioria dos médicos não estão cientes desta informação e suas implicações para a prevenção e tratamento do câncer. O filme apresenta provas convincentes de que nossa política atual de Cannabis é contraproducente.
Outra fonte de informação confiável é o capítulo sobre canabinóides e câncer em "Integrative Oncology" (Oxford University Press, 2009), um livro que editei com o oncologista integrativa Donald I. Abrams, MD (Saiba mais sobre o tratamento do câncer integrativa do Dr. Abrams. )
Depois de mais de 70 anos de desinformação sobre este remédio botânico, fico feliz por estarmos finalmente ganhando uma compreensão mais madura de seu imenso potencial terapêutico.
Fonte: http://www.huffingtonpost.com/andrew-weil-md/can-cannabis-treat-cancer_b_701005.html
Pedro Fernandes Leite da luz
Ph.D. em Antropologia - UFSC
A prova da ingestão da Cannabis sativa mais antiga que se têm são as fezes fossilizadas de um membro de nossa espécie que contêm claramente vestígios de pólen de Cannabis. Este cropólito foi achado às margens do lago Baikal, localizado na Ásia Central, e datado em 10 mil anos.
É provável que a Cannabis tenha sido uma das primeiras plantas a serem domesticadas pelo homem há 20 mil anos - vários e fortes indícios levam a essa conclusão. Há 15 mil anos, acredita-se, a planta já era usada para a confecção de tecidos, cordas, fios, etc., no entanto, não se sabe se era já inalada ou ingerida deliberadamente com a intenção de alterar a consciência, em todo caso, há provas definitivas do uso cultural da Cannabis há 6.500 anos naquela que é considerada a mais antiga cultura neolítica da China chamada Yang Chao. Nessa cultura, as fibras da planta eram usadas na confecção de roupas, redes de pesca e caça, cordas, etc., sendo que as sementes eram usadas na alimentação na forma de farinha, bolos, pudins e outras preparações.
O livro de medicina mais antigo que se conhece, o Pên-Ts'ao Ching, remonta há 4 mil anos e fala do uso mágico das inflorescências femininas da planta: " Se tomada em excesso produzirá a visão de demônios. Se tomada durante muito tempo ilumina seu corpo e o faz ver espíritos."
Há 3.500 anos, o Atharva veda, livro sagrado dos Hindus, também se referia à Cannabis na forma de Bhang, preparação esta que incluía a resina da planta misturada com manteiga e açúcar. O Bhang era usado para "libertar da aflição" e para "alívio da ansiedade". Ainda hoje o Bhang é consumido livremente em algumas partes da Índia pelos recém-casados na noite de sua Lua-de-mel, como afrodisíaco. A religião hinduísta acredita que a Cannabis é um presente dos Deuses. De fato, diz-se que a planta teve origem quando Shiva (uma das personalidades de Deus na tríade dessa religião), chegando a um banquete preparado por sua esposa Parvati, saliva ao ver tantas delícias e de sua saliva surge a planta abençoada.
Os Shaivas, devotos de Shiva, fumam continuamente a ganja (a planta feminina) com o charas (a resina das flores) para meditarem e se elevarem espiritualmente. Eles consideram que o chilum - o cachimbo onde a planta é fumada- é o corpo de Shiva, o charas é a mente de Shiva, a fumaça resultante da combustão da planta é a divina influência do Deus e o efeito desta, sua misericórdia.
Os Citas também faziam uso mágico-religioso da Cannabis. Esta era privilégio dos nobres que se reuniam para consumí-la em tendas especialmente construídas para esse fim. Essas tendas eram montadas sobre as areias do deserto e um grande buraco era aberto onde se queimavam toras de madeiras aromáticas. Quando estas estavam em brasa, três ou quatro pés da planta eram jogados inteiros no buraco que era então coberto com uma tampa feita de pele de carneiro, exceto por uma abertura em torno da qual os participantes se reuniam para gozarem dos vapores que se elevavam. Isso há 2.800 anos.
Os Assírios conheciam a planta a qual chamavam Kunubu ou Kunnapu, que veio dar no latim Cannabis. A planta era cultivada pelo rei, que a distribuía diariamente, junto com um litro e meio de cerveja, para todos os cidadãos, num claro exemplo de uso hedonístico, não anômico. As qualidades medicinais da planta estão descritas em escrita cuneiforme num dos livros mais antigos da humanidade e que fazia parte da Biblioteca de Assubarnipal há 2.700 anos. Este livro pode ser visto hoje no British Museum em Londres.
Entre os gregos, a Cannabis na forma de haxixe, era ingerida junto com ópio na célebre preparação descrita por Homero- chamada Nephenthes, que aliviava as dores, angústias e preocupações.
Devido à proibição do Corão ao uso do álcool, desde sempre o haxixe e a Cannabis têm sido o embriagante preferido dos povos islâmicos. Sendo considerada pura, a planta é passível de ser usada pelos crentes. A célebre seita dos haxixin, liderada pelo afamado Ai-Hassan lbn- Ai Sabbah, o velho da montanha, fazia uso da planta. Seu líder levava os membros a um recinto onde estes fumavam haxixe em meio a um lauto banquete servido por jovens e belas mulheres que lhes atendiam em todos os seus desejos. Após isto, o Velho da Montanha lhes dizia que assim gozariam do paraíso de Allah caso cometessem assassinatos políticos que favorecessem a seita. A palavra assassino tem origem a partir deste episódio, já que os membros da seita eram chamados de haxixin. É certo que os cruzados que os combateram aprenderam destes o uso do haxixe, levando-o consigo de volta à Europa.
Com a islamização do norte da África, a planta se espalha rapidamente por este continente e breve não só os povos islamizados dela fazem uso entusiástico como também as tribos animistas do resto da África.
Um rei africano apresentado à erva, converte-se a seu culto e a tribo passa a se chamar Bena Riamba - " os irmãos da Cannabis". todo dia ao pôr-do-sol, os membros desta tribo se reúnem em roda no pátio central da aldeia para fumar a planta. Antes de passar o cachimbo, olham-se nos olhos dizendo: " Paz irmão da Cannabis". Representantes desta tribo são até hoje encontrados na costa sul de Moçambique.
Assim como os Bena Riamba, muitas outras tribos se convertem ao uso da planta, incorporando-a em destaque no seu panteão. A palavra maconha, vem de Ma Konia, mãe divina, num dialeto da costa ocidental africana.
Apesar de saber que as caravelas portuguesas tinham seu velame e cordame feitos da fibra do cânhamo( Cannabis sativa), acredita-se que a Cannabis tenha sido introduzida no Brasil pelos negros escravos que para cá foram trazidos. Os nomes pelos quais a planta é conhecida aqui indicam tal fato, já que são todos nomes de origem africana- fumo d'angola, Gongo, Cagonha, Marigonga, Maruamba, Diamba, Liamba, Riamba e Pango. Este último vem do sânscrito Bhang, através do árabe Pang, até o africanismo pango.
De toda forma, a planta esteve desde o início associada à população de origem africana, sendo que a ampliação de seu uso, atingindo também aqueles de origem européia, era considerada por autores como Rodriques Dória como: " uma vingança da raça dominada contra o dominador".
Os cultos afro-brasileiros sempre utilizaram a Cannabis. Já no século XVIII, os relatos sobre os calundus- reunião de negros ao som de tambores- indicavam a presença da planta, que era inalada pelos participantes, deixando-os "absortos e fora de si". Até a década de 30 do século XX, quando são legalizados os Candomblés e Xangôs, a Cannabis era constantemente apreendida nos terreiros junto com os objetos de culto. A Cannabis é considerada planta Exú, sendo consagrada a esta divindade.
Em 1830, a legislação do município do Rio de Janeiro punia o uso do "pito de pango", como era conhecida a Cannabis, com pena de multa de 5 mil réis ou dois dias de detenção; esta foi nossa primeira lei a respeito da planta.
Nas décadas de 20 e 30 deste século, são produzidos os primeiros trabalhos científicos brasileiros a cerca do hábito de fumar maconha. Apesar de seus autores serem em sua quase totalidade médicos preocupados em justificar a proibição da planta, estes tinham um olhar etnográfico sensível, descrevendo com minúcias os rituais do "clube de diambistas, nome dado à associação de indivíduos com o intuito de fumar Diamba.. Os diambistas eram, preferencialmente, membros dos estratos mais baixos da população brasileira, em especial pescadores que se reuniam para fumar a erva cantando loas a esta. São dessa época os famosos versos: " Diamba, sarabamba, quando fumo diamba, fico com as pernas bambas. Fica sinhô? dizô, dizô". Termos utilizados pelos diambistas. como "fino", "morra" e "marica" entre outros, são até hoje parte da gíria própria dos usuários.
A distribuição geográfica do consumo da Cannabis na época incluía Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Maranhão e Bahia. Daí, pouco a pouco o hábito se espalha e a partir da década de 60, com a contra-cultura, passa a atingir outros estratos sociais. Atualmente, seu uso é amplamente disseminado entre as camadas médias urbanas.
Também os povos do novo mundo não ficaram imunes à Cannabis. Hoje em dia no Brasil, os Mura, os Sateré-Mawé e os Guajajaras fazem uso tradicional da erva. Os Guajajaras tem a planta em alta estima e sua presença na mitologia do grupo atesta à antiguidade de seu uso, que remeteria à segunda metade do século XVII. A planta é consumida no contexto xamânico, junto com o tabaco, para propiciar o transporte místico do pajé e na divinação. No contexto profano, a erva é inalada em grupo antes de trabalhos pesados nos multirões para dar disposição- indicando que a chamada síndrome amotivacional, associada à Cannabis- possa ser um fenômeno antes cultural do que uma decorrência dos seus princípios ativos. Os dados jamaicanos parecem confirmar essa tese, uma vez que nesse país a Cannabis é amplamente fumada por trabalhadores rurais como estimulante antes de trabalhos pesadoes e extenuantes.
Outros nativos das Américas também usam a Cannabis, entre os quais estão os índios Cuna do panamá, que já possuíam escrita antes da chegada dos europeus, os índios Cora do México, e outros. Segundo uma comunicação pessoal do arqueólogo chileno Manuel Arroyo foram encontradas pinturas ruprestes naquele país, próximas a fronteira com a Argentina, feitas com tintas cujos pigmentos indicavam a presença de thc e que foram datadas em 12.000 anos. Isto sugere não só uma presença pré-colombiana da planta no continente, como também um uso mágico-religioso da mesma, aventando a hipótese de uma inspiração cannábica de uma determinada tradição artística indígena.
Hoje em dia existem religiões organizadas onde observa-se o uso da cannabis. Para os Rastafari da Jamaica, a planta é Kaya, a energia feminina de Deus. Seu uso diário naquilo que é chamado "Irie meditation", a meditação da energia positiva, é justificado pelas seguintes passagens da Bíblia, no Gênesis:" Eu sou Jeová teu Deus, eis que te dou toda a planta que há sobre a terra, e que dá semente nela mesma, para que fazeis bom uso dela" e no livro das revelações, o Apocalipse, quando descreve o paraíso:" vi também a árvore da vida, cujas folhas são a cura das nações".
Para a doutrina do Santo Daime, a planta é sagrada e identificada com Santa Maria, a mãe de Jesus. Para consagrá-la, é necessário aderir a um uso cultural diferenciado, sendo a planta consumida exclusivamente durante os rituais, em silêncio, com o pito, a denominação nativa para baseado, passado sempre no sentido anti-horário, isto é, da direita para a esquerda.
Devido à longa história de associação entre nossa espécie e a Cannabis, esta apresenta um grande polimorfismo decorrente de inúmeras hibridizações levadas a cabo com a intenção de desenvolver plantas com qualidades desejadas. Sendo a planta dióica, ou seja, possuindo os sexos separados em duas plantas - uma macho e a fêmea, o gênero cannabis compreende três espécies distintas: sativa, indica e ruderalis. O famoso "Skunk", híbrido, aparecido recentemente e já famoso, nada mais é do que o cruzamento de três diferentes linhagens- plantas afegãs indicas, plantas tailandesas indicas e por fim plantas mexicanas sativas. Estas plantas foram cross polinizadas dando origem a um cultivar que apresenta as seguintes características: necessita de pouca luz, matura depressa e produz resina abundante com um alto teor de THC.
Ao contrário do que se pensa, o princípio ativo da Cannabis não é um alcalóide, já que não apresenta nenhuma base nitrogenada, sendo antes um lipóide solúvel complexo, composto por vários isômeros de tetrahidrocanabinóis, cujo principal responsável pelos efeitos da planta é o 3-4-transtetrahidrocanabinol.
Sabia-se desde 1988 que nosso cérebro apresentava receptores autônomos para o THC, mas somente em 1994, com a descoberta da Anadenamida por Devane que se compreendeu pela primeira vez em detalhe o mecanismo de ação do princípio ativo da Cannabis. A anadenamida, palavra que vem do sânscrito Ananda, que quer dizer felicidade, revelou-se ser um neurotransmissor autônomo presente naturalmente no nosso cérebro regulando seu funcionamento e agindo como analgésico em momentos de stress do organismo. O THC, apresentando uma estrutura química semelhante à Anadenamida, encaixa antes dessa no neurorecptor, desencandeando a gama de efeitos típicos da planta.
Logicamente os efeitos da Cannabis não podem ser creditados exclusivamente às substâncias químicas que esta contém, sendo o resultado da interação de múltiplos fatores como biológicos- o peso corporal do indivíduo e sua condição física; os psicológicos- suas motivações e atitudes, personalidade, humor e lembrança de experiências passadas; efinalmente os sociais e culturais- a natureza do grupo de usuários e sua perfomance ritual, o sistema simbólico compartilhado, a expectativa do conteúdo visionário e os adjuntos não verbais, como músicas, incensos, etc., assim como o sistema de crenças e valores dos consumidores.
Recentes estudos sobre o mecanismo da atuação do THC nos sítios neurorecptores do cérebro demonstraram a impossibilidade de adição química à substância devido a certas características de sua metabolização, sendo, portanto, uma substância "não viciante" no sentido clássico da palavra. Muitos mitos em relação à planta têm caído por terra ultimamente, á medida em que estudos com maior seriedade científica começam a ser divulgados. Recentemente a OMS (organização mundial de saúde) realizou uma pesquisa na qual chegou à conclusão que o uso recreacional da maconha traz menos malefícios à saúde pública do que o álcool e o tabaco. O valor terapêutico da planta, desde milênios conhecido da humanidade e desde já algumas décadas reconhecido pela comunidade científica, começa agora a sensibilizar os governos de alguns países como a Inglaterra e alguns estados americanos como a Califórnia, Oregon, Arizona e outros, que liberaram o uso medicinal da Cannabis.
A legislação brasileira em relação à Cannabis necessita, em face do exposto, ser repensada. Antes de mais nada, a luta pela legalização é uma luta pela ampliação das liberdades individuais. O código penal brasileiro não prevê pena para crime de auto-lesão, é por isso que o suicídio(ou sua tentativa) é inimputável. Ora, uma vez que o fumante de maconha em última análise só está fazendo mal a si mesmo, é uma contradição, pois, que seja punido por seu ato. A repressão ao consumo da Cannabis no Brasil esteve ligada, em seus primórdios, à tentativa de suprimir os elementos africanos da religiosidade popular, sendo então sua proibição historicamente ligada à tentativa de cercear a liberdade religiosa. A perseguição implacável da Polícia Federal aos Guajajaras e as periódicas batidas nas aldeias são uma afronta à liberdade de auto-afirmação étnica deste grupo indígena. A negação por parte do nosso governo do uso medicinal da Cannabis é um atentado a saúde pública, impossibilitando a cura e o alívio de muitos, que vêem sabotada a sua liberdade de viver.
A ameaça velada de enquadramento por apologia a todos aqueles que, em alguns casos, só pronunciam a palavra proibida-"maconha" é um entrave a uma das liberdades mais fundamentais- a liberdade de expressão.
Por último, mas não menos pior, a proibição do uso recreacional da maconha é uma herança sombria da tradição judaico-cristã. que penaliza o prazer, implicando numa restrição a liberdade do gozo, da fruição dionisíaca, do lazer em suma.
"A planta Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, é utilizada de forma recreativa, religiosa e medicinal há séculos mas só há poucos anos a ciência começou a explicar seus mecanismos de ação.
Na década de 1990, pesquisadores identificaram receptores capazes de responder ao tetrahidrocanabinol (THC), princípio ativo da maconha, na superfície das células do cérebro. Essa descoberta revelou que substâncias muito semelhantes existem naturalmente em nosso organismo, permitiu avaliar em detalhes seus efeitos terapêuticos e abriu perspectivas para o tratamento da obesidade, esclerose múltipla, doença de Parkinson, ansiedade, depressão, dor crônica, alcoolismo, epilepsia, dependência de nicotina etc. A importância dos canabinóides para a sobrevivência de células-tronco foi descrita recentemente pela equipe de um dos signatários, sugerindo sua utilização também em terapia celular.
Em virtude dos avanços da ciência que descrevem os efeitos da maconha no corpo humano e o entendimento de que a política proibicionista é mais deletéria que o consumo da substância, vários países alteraram, ou estão revendo, suas legislações no sentido de liberar o uso medicinal e recreativo da maconha. Em época de desfecho da Copa do Mundo, é oportuno mencionar que os dois países finalistas, Espanha e Holanda, permitem em seus territórios o consumo e cultivo da maconha para uso próprio.
Ainda que sem realizar uma descriminalização franca do uso e do cultivo, como nestes países, o Brasil, através do artigo 28 da lei 11.343 de 2006, veta a prisão pelo cultivo de maconha para consumo pessoal, e impõe apenas sanções de caráter socializante e educativo.
Infelizmente interpretações variadas sobre esta lei ainda existem. Um exemplo disto está no equívoco da prisão do músico Pedro Caetano, integrante da banda carioca Ponto de Equilíbrio. Pedro está há uma semana numa cela comum acusado de tráfico de drogas. O enquadramento incorreto como traficante impede a obtenção de um habeas corpus para que o músico possa responder ao processo em liberdade. A discussão ampla do tema é necessária e urgente para evitar a prisão daqueles usuários que, ao cultivarem a maconha para uso próprio, optam por não mais alimentar o poderio dos traficantes de drogas.
A Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) irá contribuir na discussão deste tema ainda desconhecido da população brasileira. Em seu congresso, em setembro próximo, um painel de discussões a respeito da influência da maconha sobre a aprendizagem e memória e também sobre as políticas públicas para os usuários será realizado sob o ponto de vista da neurociência. É preciso rapidamente encontrar um novo ponto de equilíbrio."
Cecília Hedin-Pereira (UFRJ, diretora da SBNeC)
João Menezes (UFRJ)
Stevens Rehen (UFRJ, diretor da SBNeC)
Sidarta Ribeiro (UFRN, diretor da SBNeC)